O tê dela

As poucas pessoas que atravessam a rua em minha companhia podem ser consideradas extremamente corajosas, sem nenhum exagero na adjetivação. Não posso dizer que gosto de viver perigosamente, já que sou bem cautelosa na grande maioria das coisas, então não me resta nada além da desatenção e da irresponsabilidade para a explicação dos meus atos. Cadê a vergonha própria daquela que, por ser estudante de Direito (e, sim, costuma-se fazer essa associação – totalmente errônea – de maneira automática), não pode desobedecer às leis? Bom, a vergonha está guardada na gaveta, no meio das tranqueiras que eu costumo utilizar vez em quando.

Foi lá que eu deixei, inclusive, a minha lixa de unhas. Toda mulher tem uma lixa de unhas na bolsa. Aquelas que não têm sempre pedem às amigas. Está aí uma coisa que precisa de cuidado constante: as unhas. Era isso que eu buscava fazer durante a curta caminhada sem fim até minha humilde residência. E era ela – a desejada lixa de unhas – precisamente o que eu procurava dentro da mochila, a princípio incerta sobre o seu paradeiro. Continuei caminhando em direção à calçada oposta despreocupadamente, como em todos os meus dias. Entretanto, não como em todos os meus dias, havia um carro aproximando-se em uma velocidade que eu subestimei... Até que as buzinadas do motorista aterrorizado alcançassem meus ouvidos.

Parei.

Parei, indo de encontro a tudo o que eu sempre disse ser o certo a fazer nessas situações. Parei, sabendo que deveria ter corrido. De que adiantava ficar lá, apenas esperando ser girada no ar pela batida? Minhas pernas até obedeceriam ao comando, se houvesse algum. Eu simplesmente não consegui pensar no que fazer, a sensatez havia fugido para algum lugar seguro e o desespero assumia formas que eu nunca sentira. Não poderia dizer se eu havia piscado durante esse tempo. Não poderia dar certeza se eu sequer havia respirado... Mas, bem, esse último é seguro supor afirmativamente.

Sabe aquela história de ver a vida diante dos próprios olhos? Não aconteceu exatamente assim comigo. Tendo a sinfonia dos pneus cantando no asfalto como trilha sonora, meus pensamentos se sucederam em uma velocidade impressionante. Minha mãe vai me matar quando souber! Mas não vai fazer diferença se eu morrer... E eu vou morrer? Deus, eu vou morrer! Será que vou conhecer o Dumbledore? E o S... Espera, não, não é isso que eu deveria pensar. E tem pensamento proibido? Eu nunca consegui proibir meus próprios pensamentos. De quê que eu estou falando? Eu vou morrer! Devia ter prestado atenção ao semáforo. Tem semáforo aqui? Meus livros vão ser atropelados! E eu nem sequer li todos aqueles guardados lá em casa... E eu nunca mais vou ver a minha casa, nem a minha mãe, nem o meu namorado. Todo mundo vai me achar idiota por morrer atropelada! Vão dizer que me avisaram. E por que eu ainda não morri? Que carro lerdo, até parece que... Então eu fui interrompida pelo leve, mas barulhento, choque contra a frente do veículo. Cambaleei para o lado, levando alguns momentos para recuperar o equilíbrio.

Meu coração pareceu parar por um longo segundo, antes de recomeçar a bater em uma frequência alucinante. Respirei fundo e arrisquei um passo, ignorando os xingamentos de quem tinha tudo para ser meu algoz. Não olhei para trás, não quis encarar novamente a situação. Dei o segundo passo com maior confiança. E o terceiro com maior pressa. Não olhei para os lados, limitei-me a seguir em frente. Deparei-me com outra rua a ser atravessada. Uma avenida, dessa vez.

Parei.

O que precisa ficar verde para eu poder atravessar: o bonequinho ou a bolinha?

Sei lá, parece bastante importante agora assegurar-me disso.


A inocente pedestre aqui se chama Thaís Ferrere, tem 18 anos e é estudante de Direito da UFRJ. Adora ler, adora escrever e adora falar. Adora repetir palavras para dar ênfase ao que diz. Pode ser teimosa, indiscreta e um pouco muito dramática. Gosta de quase nada do que escreve, mas simplesmente não consegue parar de fazê-lo.