terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Até quando?

Abriu a ventosa e, delicadamente, pôs se ao trabalho ordenado. Sentia-se gélida, tristonha, morta. Morta era a melhor palavra. Sua boca provava da insipidez de tudo, não havia algo que a cativasse. Não havia gosto que aprovasse, nem mesmo os sentia. Suas mãos moviam-se num trabalho programado, se as perdesse acreditaria que continuava com o ofício. Não dedicava qualquer atenção, tudo a vista eram vultos, borrões feitos por um olho cansado, desinteressado, distraído. Sentia-se feliz por não ter que lembrar de respirar, não se esforçar para fazê-lo, por isso ser inerente a sua vontade. Talvez, se dependesse da moça, nem o faria. Seria, de um grande modo, um adorado conforto. Sempre imaginou que uma morte tranquila seria como um pesado sono, maior que sua resistência, mais forte que suas pálpebras e reconfortante. Da mesma forma como um bom sono o é para quem está há muito acordado, há bastante cansado. Esse estado de sossego, no qual a pedra é macia cama e o barulho é canção de ninar.
Não poderia se queixar da cama onde deitava-se ou das cobertas que a circulavam. Apenas não podia dormir, tinha que se mexer, tinha que fingir, enquanto o outro também o fazia, e fingia que com ela se importava. Era mais do que deveria exigir, era mais do que poderia pedir, ou se pedisse, era o máximo que poderia receber. Ele não a merecia, nem o tanto que ela cedia. Sessenta anos e nenhum prazer, isto guarda-se para os homens, diziam, o gozo.
Então assim o era. Corpo vazio. Pedaço de carne. Objeto de uso. Mulher.
Até quando?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Conto de fada

As histórias correm pelas páginas,
Escritas, lidas, relidas, adoradas.
As palavras criam pequenos mundos
que nunca conseguiriam separadas.

Minha vontade infinita de estar
Meu sonho incoerente de ser
Imaginação aqui, ali e acolá
Em um mundo tão difícil de ter

A fantasia e a realidade como uma só
Buscando por um novo "era uma vez"
Cadê, então, a princesa encantada?

Tirando maçã, torre e cipó
Posso servir de inspiração a vocês
Cadê o meu próprio conto de fada?

domingo, 1 de janeiro de 2012

Duas datas

Eu escolhi as flores mais bonitas, mais cheirosas, mais vivas. Suas preferidas. Coloquei minha melhor roupa, abrindo mão de calça social, paletó e gravata, porque você sempre me dizia que não gostava. Arrumei meu cabelo daquele jeito engraçado, que lhe fazia perguntar se eu realmente possuía um pente dentro de casa. Não importava quantas vezes eu lhe apontasse, nem mesmo que tivesse mandado gravar o meu nome nele, você costumava rir e se recusar a acreditar.

Andei apressado até a porta, como se pudesse ouvir sua voz reclamando da minha lerdeza. Eu não podia atrasar, sabia disso. Sabia que você não toleraria mais - ou será que eu mesmo não mais aceitaria? Já havia passado do limite, não poderia desapontá-la agora. E nunca mais. Por isso eu havia decidido usar aquela corrente em meu braço. Talvez isso não fosse suficiente para uma redenção, nem mesmo parecia ser, mas eu queria que representasse um começo. Nunca quis usar, mas, de alguma forma, você considerava bonito. Agora, apenas aceitei esse fato.

Antes que eu pudesse bater a porta atrás de mim, entretanto, lembrei-me da carteira largada na mesinha de centro da sala. Retornei, demorando-me um pouco diante da imagem deprimente do vaso de flores vazio. Você sempre trazia algumas, coloridas, para tornar minha casa mais humana - seja lá o que queria dizer, nunca parei para pensar. Era estranho olhar ali e encontrar... nada. Pensei em deixar uma, mas aquele buquê era seu, somente seu. Quem sabe depois...?

Saí finalmente de casa, ignorando a vizinha pouco simpática que me espiava da fresta da porta entreaberta. Dona Olívia nunca gostara de mim, mas era impressionante como o seu bom dia conseguia fazê-la sorrir em retorno. Às vezes, eu tinha de lhe buscar no corredor, porque a mulher simplesmente não conseguia dar-se por satisfeita com alguns minutos de conversa. Perdoe-me o egoísmo, mas eram meus momentos com você que ela estava desperdiçando.

Contei meus passos e os degraus até a calçada. Você sempre dizia que eu esquecia o mundo quando fazia isso. Até hoje não encontrei uma justificativa adequada para essa mania. "Coisa de criança" era a única resposta que eu tinha. A rua estava deserta, mas isto não era um fato surpreendente. A lua no céu brilhava como se possuísse luz própria, ofuscando as estrelas que você adorava me mostrar. Ainda tenho aquele caderno com os nomes de constelações que você inventara. Sim, inventara. Eu pesquisei!

É, eu mudei. Dá para acreditar?

Ri sozinho imaginando sua expressão se ouvisse essa frase de mim. Eu ainda não adquirira segurança para dizê-la e talvez nunca o fizesse, mas o sentimento de mudança já estava aqui. Você se orgulharia, se eu lhe contasse. Talvez você consiga descobrir só de me observar. Costumava ser muito boa nisso.

Meus pensamentos me distraíram o suficiente para que eu perdesse a conta dos novos passos. Os postes ficavam para trás, intercalando momentos de luz e escuridão. Uma figura escura desviou seu trajeto na direção oposta do outro lado da rua, preferi não acompanhar mais do que o necessário. Os dias de hoje não estavam para brincadeira. E, no entanto, eu vagava pelo bairro àquela hora da noite. Não poderia reclamar se fosse assaltado, mas isso nem parecia ter tanta importância. Eu precisava lhe visitar e não podia chegar atrasado.

A caminhada não era exatamente curta, mas não via propósito em pegar algum meio de transporte. O silêncio me ajudava a pensar, a lembrar tudo o que acontecera. Meus erros pareciam tão idiotas agora e, mesmo assim, repetiram-se como um CD arranhado. Não é difícil entender por que tudo se tornou difícil demais para você. Eu nunca fui o cara ideal, principalmente por não notar que você era a mulher ideal - ao menos para mim.

Interrompi meu trajeto quando me deparei com o banco da praça onde conversávamos, naquela época em que não pensávamos em nada além de matar aula e fazer graça com os outros. Balancei a cabeça e segui meu caminho, eram lembranças demais, fortes demais. Um saudosismo que me sufocaria. E eu realmente não poderia me atrasar, mesmo que fosse por pensar em você - aliás, essa desculpa nunca colara.

Não demorei muito para chegar, ou apenas não percebi o tempo ou as ruas passar. O silêncio chegava a ser assustador. Um pássaro passou voando e eu me retraí antes de compreender o que aquele som significava. Já sabia o caminho de cor, embora tudo em volta parecesse ligeiramente igual, para onde quer que se olhasse. Ajoelhei-me e encarei o chão por alguns segundos. A pedra talhada ganhara um brilho estranho àquela noite em sua homenagem, eu imagino. Ou estou somente vendo coisas que não existem. Meu relógio de pulso apitou. Era meia-noite. Repousei o buquê no gramado logo em minha frente.

- Feliz aniversário, amor.

Não foi fácil erguer os olhos e não encontrar os seus. Não foi fácil deparar-me, ao invés, com seus lírios apoiados naquela pedra. A pedra que continha seu nome e duas datas.